terça-feira, 14 de outubro de 2014

Nem tirou o capacete...

“Nem tirou o capacete...”

Tenho saudades do Tó Pê.
Só o costumava ver duas ou três vezes por ano, quando cá vinha cheio de saudades das coisas simples que Fontanelas tem. Revia a família e “carregava baterias”. Quando chegava, independentemente da hora, tinha um ritual há tantos anos quantos estava no estrangeiro. Antes de ir para casa da mãe, ia regalar as vistas e tomar um banho de maresia e de mar à Praia da Aguda. Tinha, obrigatoriamente, que sentir a Praia da Aguda.
Não era mau diabo, antes pelo contrário. Se existia alguém com valores morais, pessoais e filosóficos, era o Tó Pê.
O Tó Pê nasceu em Fontanelas no início da década de 60 e foi um dos símbolos dessa geração. Faleceu prematuramente muito novo, na casa onde cresceu, em casa da mãe. António Pedro Borlido, de alcunha o Tó Pê, depressa seguiu as pisadas do seu falecido pai na descoberta do mundo além-fronteiras. Do avô António Pedreiro herdou a veia comunista, por si próprio desenvolveu a contestação, a irreverência, o sentido revolucionário, o que lhe valeu alguns dissabores na sociedade Fontanelense, à data ainda muito pouco tolerante em relação à diferença. Numa aldeia como Fontanelas, sob muitos aspectos fechada, o aconchego a alegados valores morais, religiosos e bafientos “bons costumes”, toldam a visão e escamoteiam a evolução, inevitável e irreversível.
Tinha vontade de ser diferente, de fazer o que as suas crenças lhe ditavam, de ter a liberdade que achava que devia ter. O Tó Pê era único. Numas das nossas últimas conversas, no bar do Janeca em 2007, o Tó Pê estava feliz, tinha os filhos na boa, a estudar e a trabalhar, na sua vida pessoal fazia o que queria, estava ligado à dança e andava a aprender a tocar uma espécie de acordeão de madeira. Também participava em associações culturais, fazia work-shops de dança, fazia o que realmente gostava: interagir, brincar, ensinar e gostar de pessoas.
O Tó Pê não era o típico emigrante empurrado pela vontade de vencer e ter condições financeiras mais favoráveis. Era aventureiro. Gostava de ser livre e correr mundo, apenas pelo prazer de conhecer novas pessoas, novas culturas, novas gentes.
O Tó Pê sempre foi um “lobo solitário”. Sempre fez o que lhe ia na alma e sem “dar cavaco” a ninguém. Na sua juventude e antes de ir para fora, sempre andou sozinho, avesso ao sentido de manada, à “Maria-vai-com-as-outras” que caracteriza a maior parte de todos nós, a nossa sociedade. A preocupação da Sra. Manuela, sua mãe, nunca o impediu de “correr mundo” e estar temporadas fora, a partir dos 17 ou 18 anos.
O Tó Pê tinha piada. Arranjava uma treta qualquer, uma conversa qualquer que todos sabíamos ser treta para nos rirmos. Fazia parte da sua forma de estar e de ser. Qualquer conversa em grupo tinha, invariavelmente, que meter risota e boa disposição. A palavra que caracterizava mesmo o Tó Pê era “alegria”. Era uma pessoa alegre, apesar de ter sofrido algumas agruras ao longo da sua vida.
Gostava de contar anedotas e mentiras teatrais, daquelas que toda agente sabia que era mentira, mas contadas com arte e engenho. Gostava de rir e fazer rir.
Certa vez chegou ao pé da malta na sua moto todo lampeiro e arranjou logo uma mentira, na hora.
Começou por dizer que tinha conhecido uma rapariga que andava de mota na Praia das Maçãs. Conversa mete conversa, era de Sintra, tinha 20 anos, não tinha namorado, uma coisa leva a outra e acabaram na praia, “confortavelmente”.
Epá, deu caldinho?” perguntou o Varetas.
Deu pois” respondeu o Tó Pê.
E a gaja, era bonita?” perguntou o Coutinho?
Responde o Tó Pê: “Epá, nem reparei. Não tirou o capacete...”


Boa, Tó Pê. Enquanto cá estiveste, viveste em pleno...

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