terça-feira, 18 de novembro de 2014

 “Quem não conhece ...”
Por volta da três da tarde daquele domingo solarengo, lá estava ele no festival da Maçã Reineta, no recinto da Sociedade. Sentado na cadeira de plástico cinzenta com pernas de alumínio, escudava-se do quente sol outonal na sombra da tenda montada para o evento. Apresentava-se de botas de cabedal, camisa clara, calça e casaco a condizer, olhar atento e sorriso maroto. Ao longo da sua vida foi e é uma constante este olhar vivo e mordaz, sempre atento, como quem precisa de perceber e viver o que o rodeia, constantemente. Cumprimentei-o, como sempre, tratando-o por Senhor. Há 50 anos que o trato por Senhor, contrastando com um tratamento por “tu” adoptado por quase todos, mais velhos e mais novos. Não é falta nem excesso de respeito, é a forma como me habituei a tratar este Senhor.
Nascido no tempo em que a força bruta e o tamanho da enxada eram quem ditava o vencedor, durante toda a sua vida lutou para contrariar esta tendência, este status quo social com o qual não podia competir. Foi-lhe negada a possibilidade de competir neste “campeonato”, pelo que teve que desenvolver capacidades intelectuais que lhe permitissem competir de igual para igual, num jogo escolhido por si dentro das parcas hipóteses dos idos anos 40 e 50. “A necessidade aguça o engenho”. Assim o fez com muita luta. Deu a volta por cima e desenvolveu um bem sucedido negócio, em conjunto com a sua mulher e filha.
A sua vida foi e é recheada de histórias do melhor que já ouvi em toda a minha vida. Para além de saber captar momentos dignos de registo, também os sabe contar de forma impar.
Praticamente todos nas aldeias de Fontanelas e Gouveia já ouviram falar destas histórias vividas na primeira pessoa ao longo de mais de 80 anos por este personagem singular. Uma vida recheada de peripécias boas e más, hilariantes e aborrecidas, dramáticas e alegres.
Ferrenho adepto do Benfica e ex ferrenho de um partido, quem o quer “picar” basta dizer-lhe que o seu clube já esteve melhor e que qualquer um faz melhor que o actual treinador. A sua clubite aguda permitia-lhe exibir o emblema do seu clube numas fitas plásticas de pendurar na porta de entrada da cozinha. Desapareceram num qualquer carnaval, paga da mesma moeda de um qualquer amigo ou vizinho, aproveitando a época para lhe devolver partida.
Mais calmo porque a idade não perdoa, este Senhor foi um dos maiores fazedores de “Judiarias” (nome dado em Fontanelas e Gouveia a brincadeiras, partidas), mas também a maior vítima de todos. Muitas “Judiarias” fez e muitas lhe fizeram.
No seu trabalho certa vez precisou da habitual mangueira para mudar o vinho de um barril para garrafões. Era dia de caça, a casa tinha muitos caçadores fregueses que estavam à espera e lembrou-se que tinha levado a dita mangueira para casa dos pais. Pegou na mota e lá foi, à pressa, buscar a mangueira. Quando lá chegou perguntou à irmã se tinha visto a mangueira do vinho. A irmã disse-lhe que o Parente (um vizinho próximo) a tinha lá ido buscar. Novamente em passo acelerado, lá foi a casa do Parente. Quando lá chegou perguntou-lhe:
-“Ó Parente”, tens cá a mangueira?”
-“Só se for a do burro!...” responde-lhe o Parente desconcertado, apanhado de surpresa, já que fora ele próprio quem lhe ensinara o recado.
Neste momento cai em si. Fora vítima de sua própria brincadeira, com a ajuda da irmã, já que tinha pregado “n” partidas sobre a “mangueira do burro do parente”, um animal com atributos sexuais fora do normal, bastas vezes chamado à conversa quando se queria troçar de alguém ou de uma situação em particular. Caiu na sua própria armadilha.
Barbeiro, Taberneiro, Merceeiro, e se o tivesse aqui à minha frente dir-lhe-ia, para me meter com ele, outra coisa acabada em “eiro”, Empresário e desde sempre o mais conhecido Agente de Seguros da Mundial Confiança em Portugal (agora Fidelidade-Mundial), com a qual trabalha há mais de 50 anos, cumpridos com zelo, dedicação e honestidade, sendo um dos mais premiados agentes da sua “Companhia”.
Muito mais há para dizer deste Senhor, nascido e criado na aldeia de Gouveia, na Rua dos Pinéus, há mais de 80 anos.
António Caetano da Fonseca, mais conhecido pelo Pinéu, carinhosa alcunha herdada da família.
Bem-haja, Senhor António.
Quem não conhece as histórias do Pinéu?


domingo, 16 de novembro de 2014

A Cabana Da Aguda

A “Cabana da Aguda”
Nasceu em 1970 pela mão do Ti João Ladeiras (João Baleia Freitas) o que se viria a chamar a “Cabana da Aguda”.
Fruto da sua carolice e da sua arte na construção, assim se deu início a um ícone da nossa aldeia até meados da década de 90. Numa fase inicial com petiscos, depressa começou a ter freguesia basta nos meses de Verão para almoços e jantares, atraídos pelo cheiro dos Sargos da Costa na grelha, Sardinhas e Frango de churrasco. Para petiscar, os Pipis bem caprichados à moda do talento petisqueiro do Ti João e todo o tipo de mariscos apanhados na Tabueira e na Aguda, com especial ênfase para os mexilhões de cebolada. Ainda hoje quando me chega este inebriante aroma, activa-se de imediato a memória olfactiva de 40 anos, transportando-me para os cheirosos odores da Cabana da Aguda.
Pouco a pouco o Ti João Ladeiras foi construindo a seu gosto, pedra a pedra, “borneira a borneira”, tronco a tronco, aquela varanda natural sobre a falésia, local espectacular para beberricar e petiscar num qualquer final de tarde entre Junho e Setembro, para quem apreciasse um pôr-do-sol calmo e tranquilo.
A minha primeira incursão na restauração foi pela mão do Ti João, da Ti Dália e do Aníbal (Aníbal Martins Freitas), filho do casal e meu compadre há mais de 20 anos e amigo desde sempre. Aos 11 anos era uma autêntica festa partilhar aquele espaço de lazer, para mim completa novidade absorvida com avidez, num espaço de gente descontraída, em paz, enquanto se lhes proporcionava uma espectacular refeição com os pés na areia, o som das ondas do mar, o cheiro a comida e maresia, uma vista magnífica e o paladar no seu auge, tocando ao máximo os cinco sentidos naquela esplanada com uma cobertura de canas cuidadosamente alinhadas sobre os troncos do tecto. À falta de energia eléctrica da rede, restavam os candeeiros a petróleo, os “Pitromax” e mais tarde em 1987 as lâmpadas de 12 volts alimentadas pela bateria da camioneta Hanomag azul do Ti João, quando o Aníbal e a Florinda reactivaram a Cabana.
Sucessivos “donos” da Cabana da Aguda, como o Jorge e o Tó, que lá estiveram alguns anos, o Jaime, deram diferentes usos a este espaço concebido para bem servir e proporcionar momentos únicos de paz e tranquilidade, quer fosse como restaurante, petiscaria, bar ou casa de fados.
Em meados dos anos 70 ainda se tinha que cumprir o doloroso caminho de areia para chegar ao acesso à Praia e à Cabana. Quando pegava na bicicleta e ia ao encontro do Aníbal, de pouco me valia pedalar na areia cega que teimava em dificultar a descida e mais ainda a subida. Na segunda metade da década foi arranjado o acesso tal como o conhecemos hoje e construído o Largo da Aguda.
A Cabana está construída em terrenos privados pelo que a sua exploração se tornou inviável a partir do momento em que o seu proprietário o proibiu. Também o exigente licenciamento para este tipo de comércio requeria um investimento avultado nas infra estruturas, muito castigadas pelo abandono e sucessivos invernos, pelo que face à inviabilidade de qualquer projecto, hoje está num avançado estado de degradação, sendo utilizado bastas vezes para fins menos próprios.
Não sei o que levou o Ti João a construir este “Santuário dos Sentidos” mas que acertou em cheio, acertou. Nesse longínquo ano da década de 70, ao som do velho rádio Philips AM que o Ti João tinha em cima do balcão, podia-se ouvir alto e bom som nas ondas do Rádio Clube Português “Quieres ser mi amante” do Camilo Sesto ou “Petite Demoiselle”, do Art Sullivan. Também o Demis Roussos e o Nelson Ned tinham poiso regular naquele rádio estrategicamente colocado em cima da prancha de madeira, de dia balcão e à noite portada de segurança para evitar os “amigos do alheio”, “convidados” frequentemente pelo isolamento do local e fraca vigilância, antevendo uma “colheita fácil” de grades de cerveja, Larangina C e bagaço caseiro.
Uma das tentativas de assalto de que a Cabana foi alvo foi particularmente hilariante. O espaço era dividido em duas zonas distintas: O interior da construção, onde era guardado tudo o que podia ter interesse aos ladrões e a parte de fora, da esplanada, de livre acesso de noite e de dia. A parte central da construção propriamente dita tinha uma cobertura de placa com vigas de betão e tijoleira, apresentando alguma segurança contra assaltos. A outra, a parte da esplanada era coberta com as tais canas alinhadas, excepto na zona da grelha que, por razões de construção, tinha uma cobertura de telha vã, suportadas em ripas e barrotes de madeira de pinho.  
Os ladrões subiram ao telhado, retiraram algumas telhas, cortaram as ripas de madeira e vai de saltar para dentro da Cabana, pensaram eles. Quando deram realmente conta “aterraram” na zona da grelha, ficando na mesma do lado de fora da Cabana da Aguda, na zona da esplanada, acessível a quem quisesse entrar pelo seu pé, tranquilamente pela porta da frente sem qualquer percalço.

Obrigado Ti João pelos excelentes momentos que proporcionou a todos quantos usufruíram deste espaço único, deste Santuário dos Sentidos, a “Cabana da Aguda”.