terça-feira, 4 de abril de 2017

Uma ervilha chamada Mundo

Uma Ervilha chamada Mundo
História real ocorrida há alguns anos.
O Sr. Abílio andava a ajudar na preparação do batizado do seu neto, filho do seu filho, nascido há meses e a ter lugar nesse Verão de 1994. Vivia nos arredores de Lisboa e possuía uma segunda casa para fins-de-semana e férias, onde poderia usufruir de campo e praia. Tinha espaço na casa de férias para fazer a boda mas precisaria de bancos ou cadeiras para sentar a família, amigos e demais convidados para o evento, a ocorrer dentro de duas semanas. Frequentador habitual do bar da coletividade da aldeia, foi aí que se dirigiu para solicitar de empréstimo o que lhe faltava, já que era por um só dia e relativamente perto. Perguntou no bar por alguém da direção da instituição para poder expor o seu pedido. Depois de aguardar um pouco lá apareceu um dos elementos da direção, solícito e disponível. O Sr. Abílio reconheceu de imediato a pessoa que estava à sua frente. Um sentimento contraditório assomou-lhe à memória, reavivando uma difícil e marcante situação passada. Apesar deste sentimento expôs o que lá o levara. Foi-lhe dito que o assunto seria apresentado em reunião de direção e que lhe seria dada resposta o mais cedo possível.
Corria o Verão de 1985. Neste solarengo final de tarde de domingo a praia-mar e o vento norte revoltavam as águas, encostando os banhistas à arriba, na tentativa de evitar as ondas carregadas de branca e abundante espuma. A quase total ausência de pessoas na água espelhava o mar revolto e agitado nesta praia sem banheiros nem nadadores salvadores. Predominavam chapéus-de-sol, famílias e grupinhos de jovens, salpicando a praia neste final de tarde. Neste calmo e tranquilo cenário surge uma senhora aflita a pedir socorro a um grupo de jovens sentados nas caídas rochas da instável arriba. Muito aflita aponta para a água e, desesperada, pergunta se alguém sabe nadar, já que o seu namorado estava a afogar-se no meio das agitadas ondas caiadas de branco. Após um impasse, um dos jovens corre para a água largando pelo caminho os objetos pessoais e a t-shirt que vestia, ao mesmo tempo que, aos tropeços, vai tirando os sapatos de ténis de marca Sanjo. Entra na água e fura as ondas com dificuldade. As ondas teimavam em bater na rija parede de rochas enviesadas naquele canto da praia, dificultando a progressão no mar. Após quase um minuto que pareceu uma hora, chegou junto do homem aflito e quase desfalecido. Não se aproximou deste e contornou-o, não fosse a tentativa desesperada deste levar tudo a perder numa derradeira e desesperada tentativa de auto salvamento, agarrando-se a qualquer coisa que alcançasse. Conseguiu agarrá-lo pelo pescoço, por trás, iniciando o difícil e exaustivo regresso à praia tendo, obrigatoriamente, que evitar a perigosa zona das rochas cortantes. Com os pulmões a rebentar e lutando desesperadamente por alcançar a firme praia, nadou o que pôde e não pôde, atingindo uma zona onde outras pessoas os esperavam e puxaram com segurança. Se não se ficou na água revolta, quase que se ficava na praia completamente esgotado. O senhor que se estava a afogar foi levado por familiares e amigos, talvez para o hospital. O miúdo nadador recuperou o fôlego a custo e juntou-se ao seu grupo.
Antes de se separarem neste encontro na coletividade o Sr. Abílio, quase em jeito de desabafo, pergunta:
- “O senhor não me conhece, pois não?”
 - “Não conheço, não senhor. Não o estou a reconhecer.”
- “Sabe que o senhor é um dos responsáveis por este batizado do meu neto?”- Pergunta o Sr. Abílio.
Desconcertado o seu interlocutor, questiona-o:
- “Não compreendo. Sou responsável porquê, Sr. Abílio?” - Retorquiu.
- “O senhor recorda-se há nove anos atrás, num domingo à tarde, de ter ido buscar ao mar um rapaz que se estava a afogar?
- “Tenho uma lembrança, Sr. Abílio”- diz enquanto franze o sobrolho, interrogado.
- “Nunca tive oportunidade de lhe agradecer pessoalmente. A criança que vai ser batizada é meu neto, filho do meu filho. O senhor tirou do mar o meu filho, pai desta criança. Se não o tivesse ido buscar, esta criança não existia.” – Desabafa o Sr. Abílio
- “ Já percebeu porque é também responsável por este batizado?”- Questionou.
O mundo é uma ervilha.

domingo, 26 de fevereiro de 2017



A Pergunta de Ouro


No dia em que foi criada a rede social Facebook, o meu filho fez-me uma pergunta que iria mudar o resto da minha vida.
Estava no sofá a ver o telejornal com os pés na lareira a fumar um cigarro.
Uma simples pergunta criou-me uma sensação de mau-estar, pôs-me o coração aos pulos e encharcou-me em suor. Qual soco no estomago, senti-me mal disposto após aquela inocente questão colocada por uma criança de oito anos cuja leitura era uma constante, tudo servindo para treinar a sua nova competência. A noite do dia 4 de Fevereiro de 2004 ficaria marcada para sempre. Uma simples pergunta de três dezenas de caracteres…
Fumava hà 25 anos. Se ainda hoje é, na segunda metade dos anos 70 fumar era um sinal de maioridade, de afirmação e quebra de barreiras para um adolescente nascido e criado no Portugal rural dos anos 60. Comecei, como a maior parte, pelo tabaco mais barato, às escondidas a fumar “Mata-Ratos” de alcunha, “Kentucky de seu nome. Doze Tostões na taberna do Semião ou no Café do Zé, doze amargosos cigarros vencidos pela teimosia de miúdos que se queriam afirmar na adolescência.
Ultimamente consumia (o verbo é o mesmo das drogas duras) dois a três maços de cigarros diários, fora os ameaços. À data cada maço custava cerca de três euros, sem bem me lembro. Gastava uma média de sete euros dia, duzentos e dez euros mês e dois mil, quinhentos e vinte euros ano. Deixei de ir ao cinema porque era um martírio estar uma hora sem fumar. Quando foram abolidos os intervalos enterrei definitivamente a possibilidade de ver um filme numa sala de cinema.
Acordava de noite a tossir com os bofes de fora, não aguentava uma simples caminhada, incomodava meio mundo em restaurantes, cafés, no carro, na rua, enfim, o que importava era mesmo o prazer de esfumaçar muito e depressa (ou medo do desprazer de não fumar).
Entrava em pânico completo se desse por mim sem cigarros. Depois de ter que ir mais do que uma vez às bombas da BP do Ramalhão às 3 da manhã, optei por manter um armazém confortável. Passei a comprar aos pacotes de 10 maços. Resolveu-me parcialmente o problema.
Naquela noite de 4 de Fevereiro tive um “Insight”. Caí em mim. Uma simples pergunta de três dezenas de caracteres feita pelo meu filho.
Já anteriormente tinha tido uma experiência de seis meses pouco convicta de deixar os cigarros. Não tinha havido compromisso, não me tinha obrigado a mim próprio a respeitar aquela decisão. Depois de “digerir a coisa”, decidi naquele momento nunca mais voltar a fumar. Decidi que nunca mais voltaria a fumar. Seria a “frio” e sem ajudas de pensos, psicólogos ou qualquer medicamento. Tinha que doer para valer. E doeu…
Após a inocente pergunta e o embate psicológico imediato, deitei com a pressa que pude o nojento maço de cigarros no crepitante fogo da lareira a escassos centímetros. Depois de algumas tentativas pouco convictas e da ameaçadora descrença da Tina nestas fases infrutíferas, decidi calar-me e aguentar a abstinência num tímido e teimoso silêncio. Se não resultasse também não tinha que a ouvir. Mas desta vez a coisa tinha batido. Aquela pergunta do miúdo…
No dia seguinte aguentei-me. Estava de papo cheio e não queria dar o braço a torcer. À noite calei-me bem caladinho e deitei-me com as galinhas. A neura já se estava a apossar da ideia, teimosamente e sem descanso. Linha contínua de dor calada e sentida, só o sono custoso me alheava da dura realidade sem fumo. Lembrei-me inúmeras vezes do cheiroso e perfumado fumo, recheado de memórias olfativas que me agarravam a um passado recente de falso prazer. O corpo estava na fase do reinício do fabrico natural de substâncias que, após o consumo de cigarros, entram no corpo misturadas no cocktail químico que é um simples cigarro. Cerca de três mil produtos químicos compõem esse cocktail.
Pensei que aguentaria se conseguisse chegar à noite e deitar-me. O objetivo era chegar à noite, dia após dia e durante o maior número de dias possível. A Tina e os miúdos aperceberam-se da repentina mudança de humor. Chegou-me a ameaçar com a compra de tabaco caso eu não contivesse o cáustico humor e a constante verborreia. Engoli em seco e refugiava-me na cama, tentando fazer com que o tempo passasse o mais rapidamente possível afogando a dor no sono sobressaltado recheado com sonhos onde disfrutava de cheirosos cigarros e me interrogava: Que raio! Mas fumas ou já deixaste? Estes sonhos acompanharam-me durante mais de 10 anos, embora cada vez mais espaçados e de menor intensidade. Muitas vezes dei comigo em sonhos em que me via com um maço no bolso e a puxar de um cigarro. Filha da puta de ideia esta…
Se não fosse aquela pergunta do Zeca ainda hoje andava para aí a cheirar mal e a servir de chaminé…
Qual pergunta…
Por inúmeras vezes lembrava-me do poema do Bocage, do tabaco. Cheguei a ir à internet procurá-lo. Cá vai:

Amigo Frei João, cuidas que é barro
O fumoso tabaco por que berro?
Um nigromante me transforme em perro,
Se há coisa para mim como o cigarro!
Ele me arranca pegajoso escarro,
Que nas fornalhas deste peito encerro;
O frio, as aflições de mim desterro,
Quando lhe lanço a mão, quando lhe agarro.
De vício tal, se é vício, não me corro,
E só tomo rapé, simonte ou esturro,
Quando quero zangar algum cachorro.
Amigo Frei João, não sejas burro;
Dize bem do cigarro; senão, morro;
Traze-me lume já ou dou-te um murro!

Qualquer alusão ao vício mantinha-me num estado de confortável esquema mental em repulsa do desprazer provocado pela falta de fumo.
A pergunta do Zeca, feita após ler nos maços de tabaco “FUMAR MATA”:

“Oh pai. Se FUMAR MATA, porque é que tu fumas?”

Perante tão inocente pergunta e não tendo resposta para o miúdo, nunca mais pus um cigarro à boca.

Puta que pariu ao vício