sexta-feira, 1 de março de 2019

Do pescoço para cima.

Do pescoço para cima!
O João “Grande” andava de roda do Joaquim “Três Palmos” para lhe exigir uma serventia para o “Alto do Moínho”, uma propriedade sua e contígua à do Joaquim, já que lhe era menos favorável dar a volta e fazer mais 300 metros para lá chegar por outro acesso. Era mais fácil atravessar a propriedade do outro que dar a volta pelo caminho. Queria passar à força pelo meio do pomar de maçã reineta do Joaquim. Ameaçou-o do alto dos seus dois metros de que lhe poderia acontecer “isto e aquilo”, sentindo-se rei, senhor e juiz a julgar em causa própria. “Se te agarro, podes ter a certeza que o osso maior fica do tamanho da minha unha do dedo mindinho”, ameaçava à frente de toda a gente. A sua figura imponente assegurava-lhe a lei necessária para obrigar uma fraca figura como o Joaquim “Três Palmos”, dono de metro e quarenta de altura de homem e sujeito ao escrutínio social da aldeia pela sua diferença. Na Taberna do Alcino “Maneta”, local das sucessivas ameaças, todos se riam do Joaquim “Três Palmos” por lhe ter feito frente e negado o propósito, desdenhando do seu intento e apoiando a bazófia do João Grande.
O Joaquim estava a ficar sem espaço de manobra, tal era a pressão do João “Grande”. Chegou a ir-lhe bater à porta às três da manha, depois de ter empinado uns bagaços a mais na matança do porco do compadre António “Barrigas”. Para evitar encontros desagradáveis até evitava ir à taberna. Mas o camelo do João Grande não o largava. Tinha que fazer qualquer coisa.
O Dr. Calheiros, vizinho do Joaquim “Três Palmos” ao fim-de-semana e professor de Matemática na Universidade Católica, era seu parceiro de copos de tinto Ramisco e longas conversas pela noite dentro. O Joaquim “Três Palmos” bebia, naquelas longas conversas, mais do simples copos de tinto. Absorvia tudo o que o Dr. Calheiros lhe transmitia. Embora não tivesse oportunidade de estudar em adolescente, sempre que podia ia à Biblioteca Itenerante da Câmara que passava de quinze em quinze dias na aldeia. Ao longo dos anos leu mais de metade dos livros da velha Citroen HY. Fazia também questão de comprar, sempre que ia à Portela de Sintra, um livro na Papelaria da Esménia, com maior frequência desde que o seu filho entrou no liceu de Sintra.
Para além de fanfarronice, o João “Grande” também possuía terras de sementeira de trigo, chegando a levar para o Grémio da Lavoura de Sintra mais de dez reboques de trator cheios até “à boca”, dizia para quem o quisesse ouvir. Fazia questão de dizer que no concelho de Sintra era ele quem produzia mais do que ninguém.
Foi às três da tarde no 15 de Agosto, feriado e dia Santo na Aldeia que se deu o encontro final. “Desta é que ele não escapa”, dizia o João "Grande" ao Vitorino "Cagado” enquanto avistava o Joaquim a jogar damas com o Luís “Furão”.
“Olha lá. Hoje é que vamos resolver a coisa. Vou buscar o papel para assinares e está feito.” Disse o João “Grande”.
“Muito bem. Vamos resolver a coisa. Tenho uma proposta para te fazer.” Ripostou o Joaquim.
“Uma proposta?” Indagou o outro.
“Sim, uma proposta. És o maior produtor de trigo do concelho de Sintra, certo?”
Enchendo o peito, rejubila o João “Grande”: “Venha quem vier”.
“Proponho-te um desafio. Se ganhares o desafio, ficas com o meu pomar e já podes passar à vontade. Se perderes fico eu com a tua terra. Pode ser?” Perguntou o Joaquim.
“Depende do desafio” acautelou o João Grande.
“Muito bem, proponho-te que aqui o Luís “Furão” escreva o desafio e as suas regras e, se concordares, assinamos os dois. O que perder, perde a propriedade. Aceitas?”
“Aceito se souber qual é o jogo” Adiantou ainda o João “Grande”, receoso.
“Concordo. Passo-te a explicar o desafio e o Luís vai escrevendo.” Disse o Joaquim.
“Aceito” replicou o outro.
Depois do Luís “Furão” ter redigido as contrapartidas de perder ou ganhar, tomou nota do jogo. Passou o Joaquim a explicar: “Produzes muito trigo, certo?”
“Certo” responde o outro
“Estás a ver este jogo de damas?”
“Estou, sim.”
“Se atribuíres um grão de trigo para o primeiro quadrado, dois para o segundo, quatro para o terceiro, oito para o quarto e assim sucessivamente, duplicando por cada novo quadrado, achas que tens trigo que chegue para completar os 64 quadrados?”
Desdenhando do pedido, assinou de imediato o documento dizendo que aceitava o desafio e que nem precisava de mais nada senão um saco de trigo que tinha acabado de ser debulhado nessa tarde. Assim foi. Foi buscar o saco de trigo a casa e só depois de chegar ao quadrado número 22 e de perder quatro horas a contar bagos de trigo é que percebeu que nem todo o trigo fabricado em todo o mundo nesse ano conseguiria completar os 64 quadrados.
Perdeu a propriedade para o Joaquim “Três Palmos” e engoliu em seco.
Parece que na semana seguinte alguém pendurou, por baixo do velho televisor Philips na Taberna do Alcino “maneta”, uma moldura com uma frase que dizia:
“No Ser Humano, o que conta mesmo é o que está do pescoço para cima”.