Por volta da três da tarde daquele domingo solarengo, lá estava ele no
festival da Maçã Reineta, no recinto da Sociedade. Sentado na cadeira de
plástico cinzenta com pernas de alumínio, escudava-se do quente sol outonal na
sombra da tenda montada para o evento. Apresentava-se de botas de cabedal,
camisa clara, calça e casaco a condizer, olhar atento e sorriso maroto. Ao
longo da sua vida foi e é uma constante este olhar vivo e mordaz, sempre
atento, como quem precisa de perceber e viver o que o rodeia, constantemente. Cumprimentei-o,
como sempre, tratando-o por Senhor. Há 50 anos que o trato por Senhor,
contrastando com um tratamento por “tu” adoptado por quase todos, mais velhos e
mais novos. Não é falta nem excesso de respeito, é a forma como me habituei a
tratar este Senhor.
Nascido no tempo em que a força bruta e o tamanho da enxada eram quem
ditava o vencedor, durante toda a sua vida lutou para contrariar esta
tendência, este status quo social com o qual não podia competir. Foi-lhe negada
a possibilidade de competir neste “campeonato”, pelo que teve que desenvolver
capacidades intelectuais que lhe permitissem competir de igual para igual, num
jogo escolhido por si dentro das parcas hipóteses dos idos anos 40 e 50. “A
necessidade aguça o engenho”. Assim o fez com muita luta. Deu a volta por cima
e desenvolveu um bem sucedido negócio, em conjunto com a sua mulher e filha.
A sua vida foi e é recheada de histórias do melhor que já ouvi em toda
a minha vida. Para além de saber captar momentos dignos de registo, também os
sabe contar de forma impar.
Praticamente todos nas aldeias de Fontanelas e Gouveia já ouviram
falar destas histórias vividas na primeira pessoa ao longo de mais de 80 anos
por este personagem singular. Uma vida recheada de peripécias boas e más,
hilariantes e aborrecidas, dramáticas e alegres.
Ferrenho adepto do Benfica e ex ferrenho de um partido, quem o quer
“picar” basta dizer-lhe que o seu clube já esteve melhor e que qualquer um faz
melhor que o actual treinador. A sua clubite aguda permitia-lhe exibir o
emblema do seu clube numas fitas plásticas de pendurar na porta de entrada da
cozinha. Desapareceram num qualquer carnaval, paga da mesma moeda de um
qualquer amigo ou vizinho, aproveitando a época para lhe devolver partida.
Mais calmo porque a idade não perdoa, este Senhor foi um dos maiores
fazedores de “Judiarias” (nome dado em Fontanelas e Gouveia a brincadeiras,
partidas), mas também a maior vítima de todos. Muitas “Judiarias” fez e muitas
lhe fizeram.
No seu trabalho certa vez precisou da habitual mangueira para mudar o
vinho de um barril para garrafões. Era dia de caça, a casa tinha muitos caçadores
fregueses que estavam à espera e lembrou-se que tinha levado a dita mangueira
para casa dos pais. Pegou na mota e lá foi, à pressa, buscar a mangueira.
Quando lá chegou perguntou à irmã se tinha visto a mangueira do vinho. A irmã
disse-lhe que o Parente (um vizinho próximo) a tinha lá ido buscar. Novamente
em passo acelerado, lá foi a casa do Parente. Quando lá chegou perguntou-lhe:
-“Ó Parente”, tens cá a mangueira?”
-“Só se for a do burro!...” responde-lhe o Parente desconcertado,
apanhado de surpresa, já que fora ele próprio quem lhe ensinara o recado.
Neste momento cai em si. Fora vítima de sua própria brincadeira, com a
ajuda da irmã, já que tinha pregado “n” partidas sobre a “mangueira do burro do
parente”, um animal com atributos sexuais fora do normal, bastas vezes chamado
à conversa quando se queria troçar de alguém ou de uma situação em particular.
Caiu na sua própria armadilha.
Barbeiro, Taberneiro, Merceeiro, e se o tivesse aqui à minha frente
dir-lhe-ia, para me meter com ele, outra coisa acabada em “eiro”, Empresário e desde
sempre o mais conhecido Agente de Seguros da Mundial Confiança em Portugal
(agora Fidelidade-Mundial), com a qual trabalha há mais de 50 anos, cumpridos
com zelo, dedicação e honestidade, sendo um dos mais premiados agentes da sua “Companhia”.
Muito mais há para dizer deste Senhor, nascido e criado na aldeia de
Gouveia, na Rua dos Pinéus, há mais de 80 anos.
António Caetano da Fonseca, mais conhecido pelo Pinéu, carinhosa
alcunha herdada da família.
Bem-haja, Senhor António.
Quem não conhece as histórias do Pinéu?
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