sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O Posto do Leite


      

O Posto do Leite de Fontanelas



Alguns lembrar-se-ão, certamente, do Posto do Leite. 

O Posto do Leite de Fontanelas era um dos postos de recolha de leite da UCAL (União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa). Estava localizado na esquina da Av. Nossa Senhora da Esperança com a Rua Fria, onde é atualmente a churrasqueira, no quarteirão mais central de Fontanelas. Foi, durante largas décadas, o ponto de encontro de uma vasta faixa da população da aldeia de Fontanelas, rivalizando com a taberna do Semião, com a mercearias das ratas e da viúva e com as respetivas padarias. Ali se juntavam, de manhã e à tarde, homens, mulheres e crianças que vinham trazer leite ao posto, num interminável vaivém diário, carregando as bilhas metálicas remendadas vezes sem conta pelo Zé Funileiro. 
À data, quase toda a produção de leite de Fontanelas era vendida à UCAL. A recolha era feita duas vezes por dia e através dos diversos postos estrategicamente espalhados pelas aldeias. 
A economia rural de Fontanelas muito dependia do desempenho das vacas que proporcionavam um rendimento diário em dinheiro vivo. Era o pé-de-meia fixo de muitas famílias, essencial para mandar os filhos à escola, comprar “quartas” de café, comprar leitões para engordar e fazer a excursão anual à Feira dos Alhos na Ericeira. Era um rendimento limitado mas fixo, ajudando sucessivas gerações a equilibrarem o deve e haver familiar.
O leite era recolhido dos animais manhã cedo, com ordenha manual, junto às sete da manhã e à tarde, perto das 17h00. Cá em casa havia um vaqueiro, a pessoa encarregue de tomar conta do gado de curral, quer fossem bovinos, caprinos ou jumentos. Estava proibido de limpar as teias de aranha do teto, já que estas protegiam de forma ecológica o equilíbrio da fauna local, nomeadamente moscas, moscardos e mosquitos. As teias de aranha encarregavam-se de limpar a bicharada indesejável que prejudicava o bom funcionamento da vacaria. Chamava-se Francisco Joaquim Castelhano, mais conhecido por Chico Castelhano e tinha também a seu cargo a tarefa de ordenha e entrega no Posto. Quando, por qualquer motivo, o Chico Castelhano não podia, avançava a segunda linha na entrega de leite no posto: Carlos Camacho, eu mesmo. Bastas vezes levava a bilha à mão pela Carreira Castelhana, percorrendo o caminho trocando de mão a pesada bilha do leite. Ia para a fila e aguardava a minha vez de ser atendido, como mandavam as regras. O Posto do Leite tinha, permanentemente, o chão molhado, consequência das permanentes lavagens a que era sujeito duas vezes ao dia. Tinha também um cheiro próprio emanado do manuseamento e armazenagem de grandes quantidades de leite, proporcionando ao espaço um odor característico do lei cru, ainda morno, que lá era manuseado.
As mulheres vinham mais à pressa trazer o leite e algumas, sempre as mesmas, tentavam furar a fila alegando ter comida ao lume, uma criança a berrar ou uma vitela a nescer. Tinham os filhos para cuidar e a lida da casa para fazer, antes de irem para o amanho das terras. Já os homens tinham todo o tempo do mundo. Aí se falava da seara da “Dona Maior” ou do batatal do “Jonal”, passando pelas hortas dos “Caniçais”. O tempo era sempre motivo de esclarecido diálogo, aludindo às previsões meteorológicas do noticiário das sete. 
“O vento virou à serra (sul), vai chover”. Dizia o Domingos “Carrombão”.
Rematava o Fernando “Careca”, funcionário encarregue do Posto do Leite que recebia e media o leite: “Quando Deus Nosso Senhor queria, até de Norte chovia.”
“Uma pinga de água dava jeito para puxar pela uva. Se não chover o bago não cresce” dizia o Carlos da Caracola.
Já o “Ré-Ré” dizia à boca cheia que preferia pinhais a vinhas. “Está um homem na cama e está o pau a crescer. As vinhas dão muito trabalho.”
Depois de deixarem o leite no posto, era visita obrigatória a taberna do Semião. O “Cai-bem”, nome dado a uma mixórdia vendida na Taberna do Semião, era a pinga de eleição nas frescas manhãs de Fontanelas. 
O posto do leite era ainda um local de brincadeira e boa disposição. À cabeça dessa boa disposição reinava o Domingos Carrombão, conhecido pela acutilante e bem-humorada forma de expressão. Na altura em que a Sra. Maria José lá trabalhava perguntou-lhe o Domingos Carrombão, a jeito de brincadeira:
“Oh Sra. Mar Zéi. Se você visse as minhas calças a cair e as suas sais a cair também, o que é que você levantava primeiro?”
“Levantava as minhas saias primeiro, claro” respondeu a Sra. Maria José.
Rematou o Carrombão: “Era mesmo à conta”.

E assim era o Posto do Leite de Fontanelas.

Um comentário:

  1. O posto do leite, como me lembro de fugir do café para lá, já com a D. Maria José, o cheiro é único, ficou-me na memória

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