Desde miúdo que convivo com o Poço
do Largo de Fontanelas, aquela construção cilíndrica no centro da aldeia. A
construção deste equipamento público remonta à época em que a água não vinha da
torneira e existia dificuldade no seu armazenamento. Ter um poço com água era
um luxo a que poucas famílias se podiam dar, pelo que os poços comunitários
representavam uma solução para as necessidades da população e seus animais.
Estes poços tinham junto a si uma
talha de pedra para que os animais de quatro patas pudessem beber a água captada
nas suas profundezas. No Poço Novo, na rua com o seu nome, ainda é possível ver
uma dessas pesadas talhas de pedra.
Outra das particularidades desses
poços era a pedra frontal que servia de proteção a quem deles se servia. Essa
pedra tinha rasgos arredondados na parte superior. Os baldes de água cheios
eram puxados à mão com a ajuda da pedra polida que servia de meia roldana. Com os
sucessivos anos, essa pedra ia-se desgastando pela fricção da corda na sua
superfície, criando sucessivos rasgos polidos característicos destes poços.
Há alguns anos atrás, por questões
de falta de uso e necessidade, ainda se falou em demolir o velho poço do largo.
Alguém com consciência impediu que tal acontecesse. Se por decreto não foi demolido,
quase que o foi quando um condutor mais distraído lá desfez o carro, chocando com pia lateral. A mesma sorte não teve o seu homólogo do Largo
da Nogueira já que foi demolido e aterrado. Tornando-se obsoleto face ao desuso
instalado, alguém achou por bem dar-lhe umas marretadas e enche-lo de entulho.
Mata-se o bicho, acaba-se com a peçonha.
O Poço do Largo era um centro de
brincadeira para os miúdos juntamente com o Coreto e a Cruz, seus vizinhos de longa
data. Esta brincadeira passava, para alguns dos mais afoitos e ágeis, por idas
regulares às suas profundezas, descendo e subindo pelo tubo metálico lá
instalado. No meu caso apenas me ficava pelas vistas cá de cima, já que a minha
condição de anafadinho não me permitia veleidades deste tipo. Recordo-me de um
belo dia um dos miúdos, num rasgo de afoiteza iluminada, lá desceu pelo tubo.
Depois de algumas tentativas mal sucedidas para subir e de uns choricos à
mistura, alguém foi buscar uma corda para puxar o destemido. Antes da colocação
da grade era esconderijo obrigatório para a miudagem brincar às escondidas,
servindo a pia interior de perigoso esconderijo improvisado.
Tenho a certeza que a água deste
poço tinha propriedades milagrosas, embora falte a confirmação científica. A
sua água serviu, até aparecer liquido mais certificado, para encher a pia da
igreja onde os devotos molhavam os dedos antes de os levarem à testa em ato de benzedura.
Ainda hoje estou para perceber como é que simples água de um poço de
Fontanelas, que mal vem no mapa de Portugal, tinha tais propriedades milagrosas.
Também este poço tem uma história
de outro tipo de brincadeira para contar. Sem lhe pedirem autorização, meia dúzia
de rapazes e raparigas colocaram uma coluna de som no seu interior, ligando um cabo
comprido ao leitor de cassetes estrategicamente colocado na janela do
Camacho´s. Corria o ano de 1988 e estávamos no Carnaval. Ninguém estranhou que
andassem a abrir uma pequena fenda no solo, suficiente para passar um cabo de som,
desde a janela do Camacho´s até ao poço, ainda o largo estava em terra batida. Uma
saca de rede das batatas serviu, juntamente com um cordel da roupa emprestado
por um vizinho, para pendurar a coluna de som dentro do poço a 5 metros de
fundo, suficiente para não ser detetada à primeira vista e causar o efeito
desejado, com eco e tudo. Estava montado o cenário. Foi gravada a cassete com a
mensagem. Junto à hora da missa e com o afluxo de pessoas à capela: “Play”.
“Tirem-me daqui, caí cá dentro do
poço. Acudam, acudam.”
“Tirem-me daqui, caí cá dentro do
poço. Acudam, acudam.”
É feio acusar alguém mas acho que
a voz era do Janeca.
Não me recordo se atrasou a cerimónia religiosa ou não. Se chegou a vir a GNR ou não. Se o padre ainda interveio ou não. Que gerou um burburinho e um desassossego medonho, gerou. Mas também causou uma gargalhada geral nas pessoas que se juntaram para presenciar mais uma partida de carnaval no largo de Fontanelas.
Viva o Poço do Largo de Fontanelas!!!
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