Fontanelas e Gouveia foram aldeias sempre marcadas por personagens
carismáticos. A família Rey Colaço, o escritor Virgílio Ferreira entre outros,
cá moraram e deixaram legado. Alguns desaguavam cá em fim de vida, vindos de
zonas mais turbulentas e procurando terminar os seus dias num ambiente pacato,
relativamente perto de Lisboa mas com campo e praia. Outros faziam parte de
famílias que cá tinham casa de campo e foram ficando. Outros ainda simplesmente
gostavam da zona e cá aterravam, adquirindo casas e deixando prole. Típica zona
de veraneio, era fácil cá adornar. A praia, o campo, o tinto Ramisco e Santarém,
boas gentes e o micro clima proporcionando invernos amenos, eram ingredientes
fundamentais para esta mescla social que compunha o ramalhete saloio de
Fontanelas e Gouveia. Também cá nasceram personagens carismáticos que fizeram e
fazem parte da história das aldeias, muitos já falecidos mas alguns ainda
vivos, como o caso de José dos Reis Filipe, mais conhecido pela alcunha de Zé Broa.
Cedo deu nas vistas pela sua particular forma de estar na vida da aldeia. Ler,
escrever ver horas contar dinheiro igualmente, faziam parte dos atributos de
rigor do Zé Broa. Era regularmente recrutado para festeiro da Festa da Páscoa e
tarefas relacionadas com escrita e contas de deve e haver. Os seus atributos
pessoais, escrita desenhada sem erros e honestidade, valiam-lhe uma assídua
solicitação para prestar serviço de responsabilidade que metesse lápis e
borracha, penosa tarefa para outros mais habituados à madeira e aço das enxadas,
aptas a escrever na terra dura e um pouca mais pesadas, propensas a garrafão à
boca e doenças de coluna.
Teve uma pesada herança familiar. Um gene da Georgina Reis, sua mãe, carregou-lhe
a esquizofrenia, o que lhe provocou uma vida pessoal e profissional de altos e
baixos, passando a maior parte da vida de adulto com entradas e saídas de
instituições psiquiátricas, consoante a medicação e a “lua”. Fino, desembaraçado
e esperto, ainda novo conseguiu libertar-se do jugo da enxada e foi trabalhar
para a Sintra-Atlântico, empresa de transporte de passageiros que operava na
zona costeira do litoral sintrense, como cobrador de bilhetes até meados dos
anos 60, altura em a doença começou a fazer-se notar mais amiúde isolando-o
gradualmente da sociedade. O estigma de “doido” estava instalado. Desaparecia
durante meses e regressava quando a doença o permitia. Recordo-me do Zé Broa
desde os anos 70 a bater em si próprio com um pau que deu à costa em plena
Praia da Aguda, a vociferar com um personagem fictício que, alegadamente, o
acompanhava diariamente. Era vulgar vê-lo a falar sozinho, a desbastar um pão
de quilo firmemente entalado no sovaco, em frente à loja da Soledade, no largo
da loja. Vivia de uma pequena reforma, do cuidado de familiares e do que
apanhava na Taboeira, zona contígua à Praia da Aguda abundante em Lapas,
Mexilhões e Percebes, de onde regressava com as botas de borracha cheias de
água a fazer “Tchoc, Tchoc”, depois de uma sesta num qualquer abrigo de canas
de uma fazenda afastada, chovesse ou fizesse sol. Mais recentemente e já com a
idade avançada, cismou que a Praia da Aguda era sua e partiu para a guerra
aberta, já com a fiel convicção de que qualquer banhista carecia de autorização
para descida à praia sem marcação. “A praia é minha e o mar é do meu pai.
Largueza!!!” e começava a chover pedrada para quem se aventurava. Há já alguns
anos que deu entrada no lar de S. João das Lampas, onde a estima, o descanso,
comida quente e medicação a horas lhe proporcionam um bem-estar na velhice.
Nos seus tempos de cobrador e numa viagem para Sintra, entrou uma moça
crescidita no Banzão, pedindo meio bilhete para Galamares. Meio bilhete estava
previsto para miúdos até aos 12 anos pelo que, à falta de documento
identificativo, restava tirar as medidas pelo tamanho e outros atributos
naturais. O Zé Broa, conhecido pela pronta resposta e língua afiada, olha para
a moça e diz-lhe:
-“O quê? Meio bilhete com
umas tetas dessas? Bilhete inteiro e já vais com sorte.”
Querias mais nada, não?...
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