domingo, 12 de outubro de 2014

Um beberrão de má-fé.

Um beberrão de má-fé.”
Sempre existiram bailaricos na aldeia de Fontanelas. Presenciei uma fase de transição entre os bailes de dançar a dois e os de dançar sozinho. O Rock e os Slows deram cabo dos bailes com "música a metro". Lembro-me, particularmente, da década de 70 e dos grandes bailes abrilhantados por conjuntos muito conceituados que reproduziam músicas dos Rolling Stones, Beatles ou Led Zeppelin. Eram os Orpor, Intento, Black Stars, etc, etc. Toda uma geração mais velha do que eu apanhou em pleno essa época, recheada de contestação ao Status Quo vigente e às músicas da Eugénia Lima ou do Jazz Flôr da Aldeia. Deixou de se dançar a dois, excepto nos Slows. Muita coisa mudou nos anos 70, em Fontanelas e no mundo.
Existiam denominadores comuns a todos os bailes:
Contestação à música alta, mães vigilantes, filhas a tentarem contornar a vigilância, bifana 5 paus e sandes de molho 10 tostões, pais a jogar sueca e a beber copos no bufete e a velha tradição da bofetada no final do baile, por esta ordem e aumentando de intensidade com o avançar da noite.
Quanto à música alta muito se ralhava mas pouco se fazia. Era moda e a vantagem era dos órgãos Farfisa, das baterias Yamaha e das guitarras Fender.
No que toca a vigilância das mães, esta assumia contornos ridículos, que ia desde a ocupação ininterrupta da primeira fila do camarote, estrategicamente sobranceiro à sala, proporcionando um posto de observação privilegiado, à permanência em pé na sala ou até, por mais do que uma vez, à vigilância em pé nas cadeiras de madeira gingonas que bordejavam o salão da Sociedade em dupla fila. Havia de tudo. Esta vigilância assumia especial cuidado quando tocavam aquelas músicas mais calmas, os Slows. Aí sim, o radar era accionado a 500% e a vigilância feita à lupa. Não há registo de que alguma mãe tenha conseguido conter as hormonas malucas das filhas que teimavam em pular que nem doidas. As filhas fugiam como podiam. Davam um pulo à casa de banho com passagem pela rua. Combinavam encontros, dançavam mais apertadas ou, simplesmente, saltavam a janela do quarto depois do baile.
Bifana 5 paus, sandes de molho 10 tostões, nada a acrescentar
Minis, médias, copos de tinto e branco, cheio ou meio, interessava era molhar o bico. Aquela música maluca baralhava a cabeça e fazia sede.
Restava o entretem final. Normalmente antes do baile acabar havia sempre bofetada. Era o sal e a pimenta da coisa. Tinha sempre que haver zaragata, normalmente provocada por um copito a mais, uma raiva antiga ou uma disputa de saias.
Quando o motivo eram saias, a coisa resolvia-se à bulha na rua com intervenção feminina ou ficava prometida nova investida na próxima vez. Raivas antigas era só letra. Não passava de trinta e um de boca, ameaças e segurem-me senão eu mato-o.
Copitos, dependia da rezinguisse dos intervenientes. Quando estavam os dois carregados, a coisa prolongava-se. Quando só um estava tocado, daqueles que qualquer copito fazia despoletar o azedume da vida e vir ao de cima o amargoso fel que lhes temperava a alma, era mais ou menos simples. Era a história do beberrão de má fé (não sei se é do Bocage):

Um beberrão de má-fé,
numa tasca amotinando,
dá tamanho pontapé
Num sábio que ia passando
que dá com ele no chão.
Esperava-se função.
Mas este levantou-se,
dizendo para a taberna:
Por uma besta dar um Couce
Há-de se lhe arrancar uma perna?


E acabava a zaragata e o baile.
Boa noite.

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