terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Fogos de artifício


         Fogos de artifício

Este final de ano promete ser barulhento. A economia está em alta e as camaras municipais, governos regionais, juntas de turismo e demais entidades que querem brindar os seus munícipes/clientes com um deslumbrante fogo de artifício abriram os cordões à bolsa e a coisa promete. É diretamente proporcional a importância do evento face à dimensão da entidade patrocinadora. Na Madeira a tradição manda que seja um deslumbrante espetáculo pirotécnico de 170.000 peças. Um pouco por todo o país os fogos de artifício são uma constante, é um facto.
Neste contexto de espetáculo de arregalar o olho em pleno século XXI, alguém se lembra:

- Das crianças que estão na sua fase de sono e que serão incomodadas pelos rebentamentos dos petardos e que lhes irão provocar choro, pânico, medo e outras coisas menos boas?
- Dos incêndios provocados?
- Dos animais que morrem (literalmente) de medo e de pânico?
- Dos animais que fogem dos seus cuidadores e que simplesmente desaparecem para sempre?
- Da angústia, medo, stress causado aos donos/cuidadores de animais ao vê-los sofrer com toda esta situação?
- Do pânico instalado nos animais que estão cativos em jaulas em veterinários, numa posição ainda mais frágil?  
- Dos doentes internados em hospitais e que são incomodados com este ribombar permanente durante o espetáculo?
- Dos milhões de euros dos contribuintes, gastos em algo que prejudica todos?
  
Daria para enumerar muitas mais situações mas estas julgo que chegam.
Parece-me ser tempo de tomarmos consciência do quão prejudicial é um fogo de artifício.

O que te parece?

domingo, 29 de dezembro de 2019

Queres ganhar 5 tostões?





Escrevi estas linhas quando o Ti Riques morreu, há cerca de cinco anos.  Logo depois morreu também a Ti Isabel. Não as publiquei porque achei lamechas e me senti culpado por não o ter visitado antes de morrer.Hoje mudei de ideias.



          “Queres ganhar 5 tostões?”


Fomos hoje enterrar o “Ti Riques”, Henrique Rodrigues da Siva, filho do Carrenquita, um dos meus vizinhos de 50 anos, porta com porta. Uma relação Humana, salutar, solidária e muito próxima. A Ti Isabel ainda não se apercebeu que o seu companheiro de 60 anos morreu. (Estou a engolir em seco e a controlar as emoções ao escrever estas linhas).
Restam as lembranças de uma pessoa que viveu e conviveu connosco durante toda a nossa vida.
Falhei para com O Ti Riques nestas últimas semanas da sua vida. Tinha prometido a mim mesmo ir visitá-lo, e à Ti Isabel, num qualquer Domingo de manhã que estava para vir, adiando sucessivamente a visita, optando pelo alheamento egoísta, deixando que fosse o próximo, e o próximo, e o próximo... .
Depois de sucessivos AVC’s, não resistiu.
Carteiro durante mais de 40 anos em Sintra, tinha uma segunda profissão enquanto a vista e as pernas o permitiram: Barbeiro.
No início dos anos 70 era cliente habitual ao domingo de manhã na barbearia do Ti Riques, não para cortar sempre o cabelo mas para ouvir as conversas dos homens da idade do meu avô que lá iam, religiosamente, cumprir o ritual semanal de fazer a barba. O meu Avô Tanoeiro, o Domingos Carrombão, o Lourenço Maçanico, o Sebastião, o Domingos Maçanico, o Riques Borracho ou o Zé Tanoeiro (Ganinça), irmão do meu avô, eram parte da equipa matinal de domingo que compunha a freguesia da barbearia do Ti Riques. Eu também queria participar nas conversas dos mais velhos, alvitrando sobre assuntos das fazendas, do tempo ou da seara. Às tantas o Ti Riques perguntava-me:
“Queres ganhar 5 tostões?”
“Quero, Ti Riques” respondia eu entusiasmado.
“Então deixa-te estar caladinho” respondia-me. E eu aguentava-me mais uns minutos, esquecia-me e voltava à carga com nova remessa de questões iluminadas.
Ali cortei o cabelo até começar a olhar para a sombra, altura em que os atributos capilares começaram a ter um peso significativo na minha auto estima. O Ti Riques compreendia a criançada e só se ria.
Durante décadas entrei na sua casa como se minha fosse. Ir à “Casa das Barbas” (a barbearia), à sua sala ou cozinha, era praticamente o mesmo que entrar na minha própria casa, embora pedindo sempre licença para entrar.
Cresci com o Toino (para os mais novos o Tofi), um dos filhos do casal. Juntos fizemos a quarta classe na Escola Primária de Fontanelas. No largo em frente à casa corríamos atrás da bola como miúdos que éramos. O Ti Riques também corria e jogava connosco, apesar de ter um problema de nascença numa das pernas. Coxeava mas corria tanto como nós. Ou mais. A sua boa disposição e a sua graça natural atraíam os miúdos e fazia com que a “Casa das Barbas” fosse o quartel general da criançada. Lá se delineavam estratégias para assaltar um qualquer terreno com nespereiras, laranjeiras ou pessegueiros, na ausência do Ti Riques, claro.
Já na fase adulta e durante décadas acordei de manhã com o barulho do escape da Zundapp que, religiosamente à mesma hora, passava à minha janela do quarto. Essa mesma Zundapp (dos anos 80) foi resgatada por mim e pelo Joel Querido a um ladrão que a roubou da Casa das Barbas. Desencantámos a motorizada numa barraca lá para os lados de Coutinho Afonso, depois de uma investigação caseira e uma perseguição a alta velocidade ao desgraçado que a roubou. O Ti Riques não sabia como nos agradecer termos encontrado a sua "princesa" de 30 anos. Até chorou.
Como nos devemos lembrar das pessoas que nos dizem algo, fica este registo escrito de uma pessoa que me disse muito: Henrique Rodrigues da Silva, para mim, o Ti Riques.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019




Um Conto de Natal

No passado sábado, 17 de Dezembro (2016), o meu pai foi encaminhado para a urgência do Hospital Amadora-Sintra numa situação preocupante, apresentando sinais que se assemelhavam a um AVC. Já na sala de espera e enquanto esperávamos que o chamassem para a triagem, reparei num senhor a roçar os 70 anos, aspeto risonho, bem-disposto, jovial e conversador, apesar dos cateteres nas costas das mãos. Aguardava pacientemente na sala de espera a sua vez para ser chamado. Reconheci-o de imediato. O Sr. António…

Em 2011, após uma queda de bicicleta e apresentando sinais de uma clavícula fraturada, levei o meu filho ao Serviço de Urgência Básico de Mem-Martins, nas antigas instalações da Messa. Chegámos a este serviço de urgência numa altura particularmente chuvosa. Chovia a potes sem se antever melhorias pelo que decidimos aventurarmo-nos pelos intervalos da chuva. Não resultou. Eis que no meio desta epopeia molhada vejo um senhor dirigir-se a nós com um chapéu-de-chuva, numa desesperada tentativa de nos manter o mais secos possível. A chuva que deveria ser a dividir por dois foi a dividir por três. Naquele momento nem sequer tive tempo de avaliar aquele simples, mas gigantesco, gesto de boa vontade por parte daquele senhor que, abandonando o conforto da portaria foi, num tremendo gesto de generosidade e boa-vontade, ajudar pessoas que nunca na sua vida tinha visto, indo muito para além dos seus deveres de porteiro deste serviço de urgência em Mem Martins. Aquela ânsia de ajudar vinha do instinto, não medindo o prejuízo a si próprio causado contando apenas e só o bem que a terceiros poderia causar. Assim foi. Escoltou-nos ao edifício e voltou para o seu gabinete na portaria, espremendo as calças encharcados pela água que nos era dirigida. Nesse mesmo dia refleti sobre o sucedido naquele serviço de urgência. Fiquei particularmente sensibilizado com aquele gesto tão inesperado. Fez-me acreditar que a natureza humana tem destas coisas fenomenais, mudando por completo o curso do nosso dia. Para além de me ter ajudado na hora, inspirou-me naquele dia a dar o meu melhor em todas as situações para com os outros, permitindo-me iniciar naquele dia o meu “efeito dominó de boa-vontade”, tal foi o poder inspirador da ação deste senhor, funcionário da Câmara Municipal de Sintra cujo dever não é, nem de perto nem de longe, ajudar pessoas no parque de estacionamento do Serviço Básico de Urgência de Sintra com um chapéu de chuva, molhando-se completamente e indo muito para além do seu dever enquanto porteiro deste serviço. Foi de tal forma “contaminante” este gesto que decidi escrever uma carta à Câmara Municipal de Sintra, mais propriamente ao Departamento de Recursos Humanos, explicando o sucedido e tecendo algumas considerações sobre o gesto deste funcionário da CMS. Damos muito mais importância à reclamação. Damos mais atenção aos nossos direitos e esquecemos os nossos deveres. Era minha obrigação, meu dever, usar o “Livro de Elogios” enaltecendo esta pessoa que tinha a seu cargo a portaria daquele serviço. Fez-me sentir bem comigo próprio e senti que o mínimo que poderia fazer seria dar a conhecer ao departamento correspondente o que este funcionário da CMS fazia aos utentes daquele serviço. Passo com regularidade a este serviço mas nunca mais vi este senhor, reformou-se ou mudou de serviço, pensava eu. Sempre que lá passo ainda me lembro do sucedido.

O Sr. António! Olhei para ele e cumprimentei-o, com um:
- “Passou bem Sr. António?” Olhou-me com ar interrogativo e perguntou:
- “De onde é que eu o conheço?”
- “De Mem Martins, Sr. António, do Serviço de Urgência onde o senhor trabalhava.”
-“ Mas você é de Mem Martins?” perguntou-me de imediato.
-“ Não, Sr. António. Trabalho lá. Aqui há uns anos o senhor ajudou-nos enquanto chovia…”
-“ Já sei.” Atalhou de repente. “Vocês estavam num Peugeot branco pequenito. Quantos anos tem o seu rapaz?” Inquiriu.
-“Já fez 21, Sr. António”. Respondi-lhe
-“Pois é. O seu filho era menor e não pôde ser atendido. Lembro-me bem. Já me reformei há quatro anos.”
-“E eu enviei uma carta…”
-“Eu sei, eu sei…” Apressou-se. “Chamaram-me aos recursos humanos e mostraram-me a carta. Você é de Fontanelas, não é? Tenho lá a carta que você enviou. Fui chamado ao Presidente Fernando Seara. Recebi um louvor.”
Enquanto esperava que o meu pai fosse chamado para a triagem ainda fui apresentado à esposa do sr. António:
-“Este é o tal sr. que enviou a carta à Câmara, foi lá com o filho …”

Obrigado Sr. António. Se todos nós tivéssemos a sua bondade e generosidade, este “efeito dominó” de coisas boas contagiaria todos e estaríamos num mundo muito melhor. Como o mundo é muito pequeno, tenho a certeza de que nos encontraremos novamente, desde que não seja num qualquer serviço de urgência.

Obrigado

Carlos Camacho

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019



Uma Aventura em Londres

1º Capítulo

Verão de 1983


Chegara o dia 17 de Julho de 1983. Estava a ganhar asas e a querer aventura. Após uma primeira incursão pela língua inglesa no Instituto Britânico ao Príncipe Real, achei que o futuro deveria ser mais radical e rumar à origem da língua: Inglaterra. Por conhecimentos familiares, consegui ir com trabalho apalavrado. Tirei o Passaporte e comprei um bilhete de avião. Pela primeira vez vou andar de avião. A estreia está prevista na British Airways, voo 435 para Gatwick, a meia hora de comboio da estação de Victoria, bem no centro de Londres. Convenci os meus pais que o futuro estava em aprender inglês num verão escaldante da capital britânica, refrescado com latas de Stella Artois e Guiness a 47 pence cada. Financiaram-me a viagem, parte da estadia, umas dúzias de “Pints” e uma ida e volta para o aeroporto da Portela. À data foi muito, já que não era nada habitual este tipo de habilidades para miúdos de 18 anos nascidos e criados na aldeia de Fontanelas. O estrangeiro era algo muito distante e inacessível, a menos que o objectivo fosse a emigração por longos períodos de tempo. Viajar hoje para Londres é mais ou menos banal e pode-se ir almoçar ao Harrods num qualquer Sábado do ano, regressando à noite sem qualquer sobressalto. À data, ir a Londres era quase como ir hoje à Papua Nova Guiné, sem telecomunicações e apenas com direito a raros telefonemas e carta escrita que demorava quinze dias a chegar ao destino. WhatsApp, fax, email, telemóvel, internet, Skype, etc, era tecnologia por inventar naquele longínquo mas inesquecível Verão de 1983. À data ainda Portugal estava longe de conseguir que pessoas e bens pudessem transitar sem problemas pelas fronteiras de Schengen pelo que, à entrada do Reino Unido, fui analisado à lupa pelos agentes do SEF local. Mal me desenrascava com o inglês e em frente ao inspector da alfândega muito menos. A pretexto de ir passar dois meses de férias em casa de familiares e matricular-me numa escola de inglês, num discurso já ensaiado, inquiriram-me se tinha dinheiro para pagar a escola e fazer face às despesas nesse tempo todo. Saquei de 500 libras do bolso e mostrei-lhes, triunfante, já que não estava ali para brincar. Só não lhe disse que 100 eram minhas e 400 emprestadas pelo Sr. Dino, dono do restaurante para onde ia trabalhar e com quem fiz a viagem. Entrei em Inglaterra. Estava, finalmente, clandestino.Toca de procurar quarto, depois de ficar uma noite em casa dos patrões. Desaguei, após afincada procura ajudado pelo catalão da cozinha, num terceiro andar sem elevador de um prédio vitoriano de Gloucester Road, junto a uma igreja de que nunca soube o nome. Depressa me instalei com a malita de viagem, depois de abrir mão de 50 libras de caução e 30 de renda para a semana que entrava. Dos 100 já só restavam uns trocos, já que bilhete de comboio, qualquer coisa que comi na rua e uma toalha de banho que me tinha esquecido de levar, levaram praticamente o resto. Como não tinha mais dinheiro, creme da barba e pincel não levei, restou-me espalhar a pasta de dentes à mão para não fazer a barba a seco. Ainda sinto o fresco cortante na face mentolada da pasta de dentes Colgate à saída de casa nas manhãs londrinas a caminho da Beauchamp Place, Knightsbridge.Já tinha entrado no “Red Line” financeiro, mas como foi preciso comprar o passe semanal fiquei logo em dívida com o Sr. Dino que me abonou algumas libras para fazer face a despesas diárias e comprar uns macitos de Marlboro de 17 cigarros, à data populares em Londres nas máquinas self-service e nas lojas 24/24 de indianos. Uma libra valia, à data, 180 escudos (90 cêntimos €), mais ou menos. Um macito de Português Suave com filtro custava, à data, cerca de 40 paus (20 cêntimos €). Nunca tinha convivido com uma moeda tão “alta”, o que me veio a ser fatal na gestão do parco soldo semanal. Andava sempre “teso”. Só a partir da terceira semana consegui ter dinheiro para enviar postais e cartas para familiares e amigos.

Continua...

domingo, 1 de dezembro de 2019

Dedicação, Consistência e Integridade


Dedicação, Consistência e Integridade.
Reparei recentemente nas obras a decorrer na “Boa Malha” ou "Bazar Saloio" há já algum tempo, fechando um ciclo de quase três décadas de permanência das inquilinas. Já com a saída do António Marques da Silva (Tangui), da ex Mercearia das Ratas onde esteve por mais de 30 anos numa constante e dedicada permanência, veio-me à memória que poucos são os negócios de porta-aberta que se conseguem manter em Fontanelas há mais de 30 anos com as mesmas pessoas, no mesmo local, num constante e consistente desempenho, dia após dia, mês após mês, ano após ano.
Também a reforçar todo este pensamento, lembrei-me da Soledade da Mercearia da Viúva, dando um final abrupto a um ciclo da permanência da mesma pessoa e no mesmo local durante mais de setenta anos, já que lá nasceu e morreu. A Nanda da Papelaria está no mesmo local, com o mesmo negócio, diariamente, constantemente, sem falhar, há quarenta anos!!! É de louvar esta persistência e resiliência. A Tia Eva do Caxiné na drogaria, embora nem sempre no mesmo local, há mais de 40 anos, praticamente, todos os dias a abrir a porta para os fregueses que querem parafusos, pregos ou um litro de petróleo. Também a padaria conta com uma das pessoas que há mais tempo zela pela entrega de pão fresco diário: A Zeca. Difícil igualar tanta dedicação. Também não nos podemos esquecer que de porta aberta temos que contar com a Capela, tendo como inquilina fixa a Nossa Senhora da Esperança, residente há muitas décadas neste local e sucessivamente assessorada ao longo dos anos por párocos de passagem. Mas porque nessas questões tenho uma opinião própria, de fé católica não alvitro e de almas não percebo, ficamo-nos por aqui.
É difícil manter negócios de aldeia. É cada vez mais difícil pela sua dimensão e limitada possibilidade de expansão, já que o crescimento de um negócio tinha muito a ver com o fluxo pedonal de pessoas que, diariamente, passam à porta, não contando com o comércio eletrónico, obviamente.
Nos negócios da aldeia, talvez a área mais difícil e desgastante seja mesmo a restauração. Pela rotação de sucessivos donos e inquilinos dos bares, cafés e restaurantes, dá para entender que não é negócio fácil. Tem muita rotação. É stressante, desgastante, suga-nos o tempo, a vida e não compensa, na maior parte das vezes. Sei com exatidão do que falo. Neste cenário da restauração de Fontanelas temos um estabelecimento que se destaca: O Café Coelho. E aqui a coisa pia fino. Temos um café que se destaca, sempre com as mesmas pessoas, no mesmo local, há 33 anos. Tenho uma profunda admiração pelas Irmãs Sandra, Célia e Lena Coelho. A Sandra sempre a mexer, a Célia aparentemente antipática, é das pessoas mais simpáticas e corretas que conheço, para além de ter um profundo sentido de humor. A Lena é a relações públicas e, na minha perceção, a “cara” do negócio. Sempre que vou ao Café Coelho a Sandra, a Célia e a Lena recebem-me sempre com a sua particular forma simpática e acolhedora, havendo sempre tempo para uma risota sobre um qualquer assunto na ordem do dia.  Estas raparigas, hoje mulheres, fizeram com que, ao longo de mais de 30 anos, o Café Coelho se conseguisse manter com muita dedicação, consistência e integridade sendo, no meu entender, uma das principais referências na restauração da nossa zona, pela sua consistência, resiliência e serviço. Se a memória não me atraiçoa, faz este Dezembro 33 anos que abriu as portas. 33 anos de Serviço consistente, dedicado, pontual, onde os padrões de qualidade estão praticamente incólumes desde o início da atividade. Um particular obrigado à Sandra, à Célia e à Lena pela “teimosia” de servirem os clientes com a sua particular forma de ser e estar. O café Coelho é, sem dúvida, um local a preservar para que todos possamos usufruir deste espaço especial em Fontanelas.
Como não devemos pedir muito de cada vez, venham mais 33 anos.
Parabéns às manas Coelho.


sábado, 16 de novembro de 2019

"Quem tiver uma nota de 100..."


“Quem tiver uma nota de 100…”

“…E se comprar este magnífico conjunto de cobertores ainda leva 12 pares de meias, uma sertã em alumínio, um passador para sopa e uma caixa de remédio para os calos. Para quem tiver uma nota de 100. Eu estou maluca, eu vou oferecer ainda mais esta toalha de mesa, 6 panos do pó, um jogo de lençóis de algodão turco a quem tiver uma nota de 100 escudos. 100 escudos. Uma nota de 100. Mas como eu não estou boa da cabeça, para quem tiver uma nota de 100 ainda leva, só hoje e agora, esta moderna toalha de mesa de linho feita nas nossas fábricas de Guimarães. Para quem tiver uma nota de 100. Eu estou maluca. Vai para aquela senhor ali. Oh Manel, recebe ali e arranja outro para aquela senhora com a criança ao colo. O senhor ao lado não tem dinheiro para comprar, não leva nada. É só para quem tiver uma nota de 100!!! ”, apregoava ao microfone preso ao suporte em volta do pescoço, tapado com um lenço de bolso, do alto da furgoneta Hanomag, a Lucinda da Roupa com a ajuda da corneta potenciada pelo velho amplificador Lord. 
A feira de S. Mamede estava no seu auge. Do Penedo aos Negrais todos vinham, religiosamente, no dia 17 de Agosto à Capela circular de S. Mamede, em Janas. Cumpria-se a tradição da benzedura dos animais para amansar a bravura, dando três voltas à capela no sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio. 
O “Pé de Chumbo” levava o Galante e o Formoso, bois de trabalho de Fontanelas, à cautela, não fossem eles estrambalharem da cabeça se lhes faltasse a amansadura. O António “Bobinas”, a Maria Domingas “do Sorna”, a filha Susete e a “Bonita”, a burra, vinham de Cortegaça, amansando cada qual à sua maneira e de diferentes formas. A “Bonita” no ritual da capela, o “Bobinas” na taberna do “Carpetes”, a Maria Domingas na confissão com o padre Jesuíno e a Susete numa fugida combinada ao pinhal com o José Maria “Cara-Linda”, conhecimento antigo do tempo das idas à praça de Sintra, quando levava a venda de hortaliça fresca.
Já no regresso, à noite, cada qual consolado à sua maneira, diz a Maria Domingas para  o António:
“Oh, homem. Fiz um negócio que até a mim me admirou como é que a mulher entregou as coisas tão depressa. Consegui esta remessa de coisas da mulher da furgoneta que estava lá a vender cobertores por menos do que ela queria. Ela queria vender por uma nota de 100 mas eu disse-lhe que só lhe dava duas notas de 50 e uma de 20. Ela disse-me que aceitava cem. Mas eu teimei e disse-lhe que só lhe dava duas notas de 50 e uma de 20. Ela entregou. Levei a minha avante e só lhe dei duas notas de 50 e uma de 20.”
“Oh mulher! Mas tu estás parva ou quê. Tu deste-lhe 120 escudos. Pagaste-lhe a mais.” Dizia o António “Bobinas” meio azamboado pelos copos de tinto emborcados, indignado com a Maria Domingas.
“Estás parvo. Dei-lhe duas notas de 50 e uma de 20. Dá menos que 100 escudos.” Retorquia a Maria Domingas.
O que é facto é que, argumento para cá, palavra para lá, o António “Bobinas” e a Maria Domingas pegaram-se à bofetada no meio da estrada, ao pé do chafariz de Lourel, ficando um deles com um olho negro.
A coisa passou e no ano seguinte lá foram, no dia 17 de Agosto, a S. Mamede cumprir com o ritual anual da amansadura. À vinda lembra-se a Maria Domingas:
“Oh, homem. Lembras-te o ano passado por esta ocasião aqui em Lourel. Avençamos um com o outro por causa dos cobertores. Ainda estou cá na minha: duas notas de 50 e uma de 20 é menos que 100 escudos.”
Consta que durante mais de 20 anos o António “Bobinas” e a Maria Domingas “do Sorna”, em frente ao chafariz de Lourel, se pegaram à bofetada por causa de uma conta de difícil resolução.
Duas notas de 50 e uma de 20 é mais ou menos que 100 escudos?
Eu ainda estou cá na minha. 
Mau!!!! 
Também queres um olho negro???

Contas são contas!!!

sexta-feira, 1 de março de 2019

Do pescoço para cima.

Do pescoço para cima!
O João “Grande” andava de roda do Joaquim “Três Palmos” para lhe exigir uma serventia para o “Alto do Moínho”, uma propriedade sua e contígua à do Joaquim, já que lhe era menos favorável dar a volta e fazer mais 300 metros para lá chegar por outro acesso. Era mais fácil atravessar a propriedade do outro que dar a volta pelo caminho. Queria passar à força pelo meio do pomar de maçã reineta do Joaquim. Ameaçou-o do alto dos seus dois metros de que lhe poderia acontecer “isto e aquilo”, sentindo-se rei, senhor e juiz a julgar em causa própria. “Se te agarro, podes ter a certeza que o osso maior fica do tamanho da minha unha do dedo mindinho”, ameaçava à frente de toda a gente. A sua figura imponente assegurava-lhe a lei necessária para obrigar uma fraca figura como o Joaquim “Três Palmos”, dono de metro e quarenta de altura de homem e sujeito ao escrutínio social da aldeia pela sua diferença. Na Taberna do Alcino “Maneta”, local das sucessivas ameaças, todos se riam do Joaquim “Três Palmos” por lhe ter feito frente e negado o propósito, desdenhando do seu intento e apoiando a bazófia do João Grande.
O Joaquim estava a ficar sem espaço de manobra, tal era a pressão do João “Grande”. Chegou a ir-lhe bater à porta às três da manha, depois de ter empinado uns bagaços a mais na matança do porco do compadre António “Barrigas”. Para evitar encontros desagradáveis até evitava ir à taberna. Mas o camelo do João Grande não o largava. Tinha que fazer qualquer coisa.
O Dr. Calheiros, vizinho do Joaquim “Três Palmos” ao fim-de-semana e professor de Matemática na Universidade Católica, era seu parceiro de copos de tinto Ramisco e longas conversas pela noite dentro. O Joaquim “Três Palmos” bebia, naquelas longas conversas, mais do simples copos de tinto. Absorvia tudo o que o Dr. Calheiros lhe transmitia. Embora não tivesse oportunidade de estudar em adolescente, sempre que podia ia à Biblioteca Itenerante da Câmara que passava de quinze em quinze dias na aldeia. Ao longo dos anos leu mais de metade dos livros da velha Citroen HY. Fazia também questão de comprar, sempre que ia à Portela de Sintra, um livro na Papelaria da Esménia, com maior frequência desde que o seu filho entrou no liceu de Sintra.
Para além de fanfarronice, o João “Grande” também possuía terras de sementeira de trigo, chegando a levar para o Grémio da Lavoura de Sintra mais de dez reboques de trator cheios até “à boca”, dizia para quem o quisesse ouvir. Fazia questão de dizer que no concelho de Sintra era ele quem produzia mais do que ninguém.
Foi às três da tarde no 15 de Agosto, feriado e dia Santo na Aldeia que se deu o encontro final. “Desta é que ele não escapa”, dizia o João "Grande" ao Vitorino "Cagado” enquanto avistava o Joaquim a jogar damas com o Luís “Furão”.
“Olha lá. Hoje é que vamos resolver a coisa. Vou buscar o papel para assinares e está feito.” Disse o João “Grande”.
“Muito bem. Vamos resolver a coisa. Tenho uma proposta para te fazer.” Ripostou o Joaquim.
“Uma proposta?” Indagou o outro.
“Sim, uma proposta. És o maior produtor de trigo do concelho de Sintra, certo?”
Enchendo o peito, rejubila o João “Grande”: “Venha quem vier”.
“Proponho-te um desafio. Se ganhares o desafio, ficas com o meu pomar e já podes passar à vontade. Se perderes fico eu com a tua terra. Pode ser?” Perguntou o Joaquim.
“Depende do desafio” acautelou o João Grande.
“Muito bem, proponho-te que aqui o Luís “Furão” escreva o desafio e as suas regras e, se concordares, assinamos os dois. O que perder, perde a propriedade. Aceitas?”
“Aceito se souber qual é o jogo” Adiantou ainda o João “Grande”, receoso.
“Concordo. Passo-te a explicar o desafio e o Luís vai escrevendo.” Disse o Joaquim.
“Aceito” replicou o outro.
Depois do Luís “Furão” ter redigido as contrapartidas de perder ou ganhar, tomou nota do jogo. Passou o Joaquim a explicar: “Produzes muito trigo, certo?”
“Certo” responde o outro
“Estás a ver este jogo de damas?”
“Estou, sim.”
“Se atribuíres um grão de trigo para o primeiro quadrado, dois para o segundo, quatro para o terceiro, oito para o quarto e assim sucessivamente, duplicando por cada novo quadrado, achas que tens trigo que chegue para completar os 64 quadrados?”
Desdenhando do pedido, assinou de imediato o documento dizendo que aceitava o desafio e que nem precisava de mais nada senão um saco de trigo que tinha acabado de ser debulhado nessa tarde. Assim foi. Foi buscar o saco de trigo a casa e só depois de chegar ao quadrado número 22 e de perder quatro horas a contar bagos de trigo é que percebeu que nem todo o trigo fabricado em todo o mundo nesse ano conseguiria completar os 64 quadrados.
Perdeu a propriedade para o Joaquim “Três Palmos” e engoliu em seco.
Parece que na semana seguinte alguém pendurou, por baixo do velho televisor Philips na Taberna do Alcino “maneta”, uma moldura com uma frase que dizia:
“No Ser Humano, o que conta mesmo é o que está do pescoço para cima”.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Parabéns ao Camacho's

Parabéns ao Camacho's
Faz hoje, 29 de Maio de 2017, trinta anos que abriu pela primeira vez ao público o Café-Bar Camacho’s.
Naquela solarenga terça-feira, 20 de Setembro de 1983, desembarquei no voo 435 da British Airways depois de uma efusiva e entusiasmante prolongada estadia em Londres. Esta aventura marcou, definitivamente, a minha vida. Vim com a cabeça cheia de ideias e planos para o futuro, assumindo os Pub’s Ingleses um lugar de destaque. A idade era propícia ao tema e estava particularmente recetivo à ideia de, num futuro a médio ou longo prazo, concretizar a vontade de seguir o negócio da restauração, iniciada como aprendiz de empregado de balcão no Café Coreto no dia 1 de Abril de 1981.
Apesar de só ver de uma vista fruto de um acidente de caça, o José Elisiário Camacho sempre teve “olho” para o negócio. Percebeu o declínio da agricultura nos moldes da “enxada na mão” e do “garrafão à boca”. Já a colocação dos aspersores na rega automática na horta de cenoura foi uma guerra difícil de vencer com a mentalidade retrógrada própria da idade do meu avô Tanoeiro. Num sistema de minifúndio difícil de mecanizar e totalmente dependente da mão-de-obra, a agricultura tradicional de Fontanelas tinha os dias contados a curto prazo, fruto da debandada geral para empregos e negócios menos duros e com maior rentabilidade. Também o acentuado aumento dos salários e a baixa produtividade determinavam o seu fim a curto prazo. Iriam restar os mais velhos, resistentes à mudança, e aqueles que se conseguissem adaptar à nova realidade. O vinho, o trigo e a fruta estavam cada vez mais caros de produzir. Farto de madrugadas perdidas na praça de Sintra e uma rentabilidade cada vez mais limitada, viu num novo negócio no centro da aldeia a possibilidade de evolução. Juntou o útil ao agradável e comprou a adega da família Semião, também a pensar nos rapazes que tinha em casa e que, mais cedo ou mais tarde, teriam a sua ocupação garantida no futuro negócio.
Assim foi. A “adega dos Semiões” tinha ido parar às mãos do José Gomes, conhecido pelo Zezinho, residente em Almoçageme e viúvo da Joaquina da “Rata”, falecida anos antes. Um casamento em comunhão geral fez do Zezinho, por herança, dono de uma parte do património da família Semião herdado pela esposa, nomeadamente a Adega no centro da aldeia, adquirida pelo meu pai no início de 1986. Acabei o SMO (Serviço Militar Obrigatório) em final de Abril, no dia 1 de Maio de 1986 começámos a vazar a velha e recheada adega, cheia de velhos barris, teias de aranha e toneladas de pó. Durante o ano seguinte lá fiz de tudo, em conjunto com o José Augusto, pedreiro de serviço à obra, o meu irmão, o meu pai e uns quantos serventes de ocasião por alturas do enchimento das placas de betão armado. Tirei um curso intensivo de IBM (Introdução ao Balde de Massa) com especial destaque para alancar às costas com os ditos baldes de massa de cascalho e tijolo de onze, não faltando generosas doses de areia, ferro e cimento. Tinha ainda oportunidade de ligar o potente rádio da velha Ford Transit do meu pai, sintonizar a Rádio Comercial e ouvir, junto às cinco da tarde e apresentado pelo Luís Filipe Barros no Rock em Stock, uma especial música do recém-editado álbum 5150, dos Van Halen, “Why can’t this be love”, tudo isto condimentado com o trepidante e metálico ronronar de fundo provocado pela betoneira a gasóleo que teimava em agitar cimento, água e areia.
A partir do final de 1986 a coisa começou a ganhar forma e a entrar na fase dos acabamentos. Uma especial atenção com as madeiras, nobre material sempre presente no Camacho’s e ainda hoje visível no teto, balcão, mesas, cadeiras e escada, deram os retoques finais juntamente com as cortinas em Tartan escocês, penduradas em ferragens de latão compradas na casa Castelo Branco, em Lisboa. Também o despenseiro de tabaco, totalmente feito em madeira e acrílico, foi completamente original, removido em 2008 por se tornar obsoleto face à entrada em cena das máquinas de tabaco.
Quase quatro anos depois de chegar de Londres, no dia 29 de Maio de 1987, e após um ano de trabalho no edifício construído de raiz no largo de Fontanelas, abriram-se as portas do Camacho’s Café-Bar às 18h00 de uma radiante sexta-feira, um dos dias mais felizes da minha vida. Eu, o meu irmão e o meu pai nas mesas e balcão e a minha mãe na cozinha. Rapidamente chegámos à conclusão que teríamos que ter ajuda para podermos corresponder à afluência de clientes.
Desde o primeiro dia que o conceito pegou. A diferença, a novidade, a irreverência da juventude, os hambúrgueres e pregos feitos pela Mariana, os excelentes pequenos-almoços, a pastelaria caseira, tudo reforçado mais tarde com a cerveja a metro, numa outra fase, fizeram com que o negócio evoluísse e o Camacho’s ficasse cada vez mais conhecido.
No dia em que lançámos o spot publicitário de dez segundos da cerveja-a-metro na Rádio Energia, a ala jovem da TSF, estacionei o carro às 23h05 junto a um semáforo na Rua Elias Garcia, na Amadora, para poder ouvir, com o coração aos pulos, na antena da Rádio Energia o spot criado pelo Janeca numa qualquer noite mais bebida. Assim era: “Sabes o que é um Metro? O Metro é a décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre. Mas para que o conheças melhor vai ao Camacho’s, em Fontanelas, beber Cerveja-a-Metro.” E a malta ia… aos montes, às resmas. Apareciam de todos os lados e tinham que ficar na rua porque não cabiam lá dentro, literalmente.
Trinta anos de vida de um espaço recheado de encontros e desencontros. Trinta anos de vida com inúmeras histórias plenas de emoções vividas por todos os que por lá passaram ao longo destas décadas. Meio mundo lá trabalhou, mais ainda lá comeu, bebeu, riu, chorou, amou… . O Camacho’s fez e faz parte de uma significativa parte de todos nós, agora ou nos trinta anos passados.
Todos os que por lá passámos temos razões para brindar pelas histórias lá vivenciadas e por as poder recordar com nostalgia e saudade.
Parabéns ao Camacho’s pelas suas três décadas.
Parabéns a todos nós que fizemos, e continuamos a fazer, parte da sua história.
Vai um Brinde a mais trinta?