“Quem tiver uma nota de 100…”
“…E se comprar este magnífico
conjunto de cobertores ainda leva 12 pares de meias, uma sertã em alumínio, um
passador para sopa e uma caixa de remédio para os calos. Para quem tiver uma
nota de 100. Eu estou maluca, eu vou oferecer ainda mais esta toalha de mesa, 6
panos do pó, um jogo de lençóis de algodão turco a quem tiver uma nota de 100
escudos. 100 escudos. Uma nota de 100. Mas como eu não estou boa da cabeça,
para quem tiver uma nota de 100 ainda leva, só hoje e agora, esta moderna
toalha de mesa de linho feita nas nossas fábricas de Guimarães. Para quem tiver
uma nota de 100. Eu estou maluca. Vai para aquela senhor ali. Oh Manel, recebe
ali e arranja outro para aquela senhora com a criança ao colo. O senhor ao lado
não tem dinheiro para comprar, não leva nada. É só para quem tiver uma nota de 100!!!
”, apregoava ao microfone preso ao suporte em volta do pescoço, tapado com um
lenço de bolso, do alto da furgoneta Hanomag, a Lucinda da Roupa com a ajuda da
corneta potenciada pelo velho amplificador Lord.
A feira de S. Mamede estava no
seu auge. Do Penedo aos Negrais todos vinham, religiosamente, no dia 17 de
Agosto à Capela circular de S. Mamede, em Janas. Cumpria-se a tradição da
benzedura dos animais para amansar a bravura, dando três voltas à capela no
sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio.
O “Pé de Chumbo”
levava o Galante e o Formoso, bois de trabalho de Fontanelas, à cautela, não
fossem eles estrambalharem da cabeça se lhes faltasse a amansadura. O António “Bobinas”,
a Maria Domingas “do Sorna”, a filha Susete e a “Bonita”, a burra, vinham de Cortegaça,
amansando cada qual à sua maneira e de diferentes formas. A “Bonita” no ritual
da capela, o “Bobinas” na taberna do “Carpetes”, a Maria Domingas na confissão
com o padre Jesuíno e a Susete numa fugida combinada ao pinhal com o José Maria
“Cara-Linda”, conhecimento antigo do tempo das idas à praça de Sintra, quando
levava a venda de hortaliça fresca.
Já no regresso, à noite, cada
qual consolado à sua maneira, diz a Maria Domingas para o António:
“Oh, homem. Fiz um negócio que
até a mim me admirou como é que a mulher entregou as coisas tão depressa. Consegui
esta remessa de coisas da mulher da furgoneta que estava lá a vender cobertores
por menos do que ela queria. Ela queria vender por uma nota de 100 mas eu disse-lhe
que só lhe dava duas notas de 50 e uma de 20. Ela disse-me que aceitava cem.
Mas eu teimei e disse-lhe que só lhe dava duas notas de 50 e uma de 20. Ela
entregou. Levei a minha avante e só lhe dei duas notas de 50 e uma de 20.”
“Oh mulher! Mas tu estás parva ou
quê. Tu deste-lhe 120 escudos. Pagaste-lhe a mais.” Dizia o António “Bobinas” meio
azamboado pelos copos de tinto emborcados, indignado com a Maria Domingas.
“Estás parvo. Dei-lhe duas notas
de 50 e uma de 20. Dá menos que 100 escudos.” Retorquia a Maria Domingas.
O que é facto é que, argumento
para cá, palavra para lá, o António “Bobinas” e a Maria Domingas pegaram-se à
bofetada no meio da estrada, ao pé do chafariz de Lourel, ficando um deles com
um olho negro.
A coisa passou e no ano seguinte
lá foram, no dia 17 de Agosto, a S. Mamede cumprir com o ritual anual da
amansadura. À vinda lembra-se a Maria Domingas:
“Oh, homem. Lembras-te o ano
passado por esta ocasião aqui em Lourel. Avençamos um com o outro por causa dos
cobertores. Ainda estou cá na minha: duas notas de 50 e uma de 20 é menos que
100 escudos.”
Consta que durante mais de 20 anos
o António “Bobinas” e a Maria Domingas “do Sorna”, em frente ao chafariz de
Lourel, se pegaram à bofetada por causa de uma conta de difícil resolução.
Duas notas de 50 e uma de 20 é
mais ou menos que 100 escudos?
Eu ainda estou cá na minha.
Mau!!!!
Também
queres um olho negro???
Contas são contas!!!