terça-feira, 21 de janeiro de 2020

2º Capítulo - Diário - Viagem China


2º Capítulo  -  Diário

14 de março de 2005 - Segunda Feira

Antes de seguir rumo ao oriente, estabeleci uma série de contactos com “traders” para poder visitar fábricas de móveis, candeeiros, etc, devidamente acompanhado por alguém conhecedor da geografia e mercado locais. De acordo com o que estava previsto, nessa segunda-feira iria a uma fábrica de candeeiros “Tiffany”. Contacto de véspera com o David Wang, combinando encontrar-me com ele na estação de comboios de Huizhou, uma cidade a cerca de duas horas de viagem de Shenzhen.
Saí do hotel num táxi recrutado na rua e aí tive mesmo a certeza que os taxistas chineses são uma raça completamente à parte, pois num percurso de 3 Km, deverá ter cometido mais de 100 infracções ao código da estrada e colocado a vida dele, minha e de mais uma dezena de pessoas em perigo.
Na véspera tinha comprado um mapa de Shenzen, num quiosque. Aparentemente é uma aquisição simples, básica. Escolhe-se o dito e siga. Pois… É fácil em Inglaterra ou na Alemanha comprar um mapa no idioma local e orientarmo-nos. Na China os mapas estão, obviamente, em Chinês. Só ao quarto ou quinto sítio onde procurei é que consegui descortinar um que não fosse em chinês. Lá uma alma caridosa remexeu o baú e, com ar triunfante, exigiu-me 12rmb pelo cobiçado mapa. Pagava nem que fosse 120 só para não me perder no meio de uma cidade com milhões de habitantes, sem saber encontrar o hotel no meio de tanto prédio. À cautela tinha pedido quatro cartões de visita do hotel e colocando-os em sítios diferentes da roupa. Mal seria se perdesse todos em simultâneo.
A salvo, saí na estação dos comboios às 6.30 horas da manhã que, à semelhança da guerra do Raul Solnado, ainda estava fechada.
Fui dar uma volta e matar o bicho, num dos múltiplos restaurantes existentes na área, mesmo ao lado de mais um KFC. Pequeno-almoço bom e barato, embora com insistência no “black coffee” que de pouco valeu, pois tive que levar na mesma com o café com leite da praxe.
“Caffee” que de igual ao nosso só tem a semelhança na sonorização, é na realidade um café com leite bebido aos litros pelos chineses, juntamente com o popular chá. Resta acrescentar que é mais um produto importado por esta sociedade altamente consumista, desta vez foi a Nescafé (caffee) que viu o golpe e pôs esta malta toda a misturar café solúvel e leite em pó com água quente, fornecida por máquinas tipo “Àqua Viva”, quente e fria. É sempre siga.
A sociedade chinesa está-se a transformar gradualmente numa sociedade altamente consumista, à semelhança do Japão, Coreia do Sul, etc, onde os centros comerciais publicitam modelos ocidentais, numa onda de “American Way of Life”.
Lá comprei o bilhete e esperei 3 horas, pelo comboio das 10.17 horas, que me pareceu ter partido antes do horário previsto. Pareceu-me porque até aí andei sem relógio, com o do telemóvel completamente apagado nem sei porquê. Chinesices.
Embarquei após ter passado mais um controlo policial no interior da estação, com direito a raios X na mala de viagem e tudo, depois de me ter sido pedido o passaporte.
O comboio tinha lugares marcados que só descobri uma hora depois, numa estação seguinte, quando uma rapariga me fez levantar ao mostrar-me o seu bilhete, coisa que eu nem pus em causa, já que para mim o que lá estava escrito era tudo, e aqui sim literalmente, chinês. Lá me levantei contra vontade. Até já tinha arranjado camaradagem com dois rapazes e uma rapariga que comigo completavam o grupo de quatro nos assentos virados uns para os outros, com uma mesa pequena de apoio ao meio. Um dos companheiros de viagem compreendeu e, de imediato, voluntariou-se para ocupar o lugar que me era destinado e eu continuei onde estava. Ainda existem almas caridosas neste mundo.
Duas horas depois e chegado a Huizhou, comprei um relógio … chinês. Custou-me 60 rmb (6 €) na loja da estação de comboios. A fome apertava e lembrei-me das sopas instantâneas que é só necessário juntar água a ferver. Durante a viagem tinha visto muita gente ir atestar o “balde” à torneira de água quente, dentro do comboio. Regra nº 1, deixar arrefecer. Regra nº 2, ver se é picante. Regra nº3 cheirar primeiro a ver se não cheira ao tal cheiro que está por todo o lado, o tal que enjoa como o caraças. Após esperar uma hora pelo anfitrião e pôr uma grande parte dos bagageiros por conta própria, trocadores de dinheiro por conta própria, taxistas de moto, indigentes que pousam nas estações de comboio e demais gente que estava no hall da estação , a rir , lá segui para a fábrica de candeeiros Tiffany.
Resta acrescentar que sou muito notado em todos os sítios por onde tenho andado, especialmente fora dos centros urbanos, onde sou elevado a atracção principal do circo, dando direito a paragens de boca aberta, risos e comentários em chinês que não me atrevo a decifrar.
Regresso de autocarro, após David Wang me ter deixado numa estação de autocarros nova e muito bem organizada. A China está como Portugal estava há quarenta anos.
No regresso é que me apercebi da verdadeira dimensão do desenvolvimento desregrado da China. Não consigo descrever a forma desordenada como esta sociedade funciona, onde passou do 8 ao 80 em poucos anos, sem infra-estruturas, com muita poluição de toda a ordem, com … tudo o que me parece que não devia ser. É caótico, desarrumado, sujo, poeirento, inacabado, populosíssimo.
Chegado a Shenzhen novamente, lá fui pôr a bagagem ao hotel e preparar-me para jantar.
Já tinha tirado o azimute a um restaurante na baixa que tem o peixe vivo em tanques, junto à porta da rua, onde o cliente escolhe, eles pesam e é cozinhado de seguida. Peixe branco cozido ao vapor, vieiras com molho de soja e um arrozito para compor. Um manjar digno de rei e depois de ter pago 99 rmb(9,9€), fui “desmoer”, andando a pé pela baixa e tentar arranjar um bar onde pudesse beber um café decente. Descobri quando falei com a gerente do “Master Club que não existe, praticamente, assaltos ou algo que possamos recear nas ruas de Shenzen. De facto andei muito a pé sem nunca recear qualquer tipo de situação menos boa.
Lá arranjei um sítio onde vi uma máquina de café de saco e pedi um “black coffee”, mas desta vez com convicção, não fosse o artista pôr lá qualquer leite misturado. O funcionário respondeu um “Oué” repleto de “saber fazer”, de confiança, pleno de convicção. Fiquei confiante também. Pela forma como me exprimi e pela forma como o funcionário manifestou o seu entendimento pelo meu pedido, tive a certeza absoluta de que iria beber um saboroso café made in Brasil, habilmente filtrado por um zeloso funcionário chinês, num bar longe de casa, às dez horas da noite, nos confins do Oriente. Pelos vistos deveria ter sido ainda com mais convicção, pois na hora da verdade lá vinha o galão à moda chinesa, ainda com borbulhas e tudo. Puta que o pariu.
Caminhada até casa, nas calmas.
Havia já alguns dias que falar era quase proibido. Pouquíssimo inglês e mais nada. Andava com falta de falar, de me exprimir, de massajar o ego. Começamos a ficar eremitas e pensativos. O bicho humano é mesmo uma raça comunicativa. Precisava de comunicar, de me exprimir. Quando cheguei ao hotel e apanhei o elevador encontrei uma ocidental, francesa. Vinte segundos foram necessários para percorrer o percurso do elevador até ao nono andar. Não me lembro de alguma vez ter 20 segundos tão comunicativos. Acho que nunca me soube tão bem encontrar alguém que me entendesse e que eu também compreendesse. Fiquei radiante por poder falar com alguém “próximo” (França) de Portugal.
Suite com vista para a rua, a cheirar não sei a quê, com um som de fundo tipo água a correr nos esgotos do vizinho de cima, uma cama com colchão rijo, um Jet lag descompensador do relógio biológico,

… zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

Continua…

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